Sobre IA, formigas e formigueiros

Obs.: Este é um artigo provocativo e repleto de devaneios. Não sabemos o que irá acontecer, podemos apenas conjecturar sobre o tema. Leia por sua conta e risco.
Recentemente assisti ao filme Submissão.
O filme em si passa longe de ser uma obra-prima, ele acaba focando mais nos acontecimentos assustadores numa família específica, acontecimentos estes que giram em torno de dois protagonistas: um pai galã frustrado e uma androide atraente e extremamente prestativa.
Mas o que realmente chama a atenção no filme é a sociedade construída ao redor da trama principal. Nela somos apresentados a um mundo — talvez não tão distante — em que as IAs e os robôs já são usados como substitutos para funções que humanos tradicionalmente sempre desempenharam. Babás, diaristas, garçons, pedreiros e até médicos já começam a ser trocados por máquinas muito mais eficientes que os humanos em si. Elas não se cansam, não se entediam, não procrastinam nem acordam de mau-humor. Os poucos humanos que sobram empregados são geralmente supervisores que acompanham o trabalho silencioso dos robôs humanoides. Não que os robôs precisem de supervisão, aliás.
Apesar do filme não abordar o tema da substituição humana nos postos de trabalho em profundidade, sabemos que no mundo real esse assunto está causando cada vez mais calafrio nas pessoas. Afinal, seremos substituídos? Se sim, quando? O que faremos depois?
Essa pergunta parece se multiplicar na língua e na mente dos humanos. Mas o mundo está polarizado e, assim como na política, aqui também existe um vasto grupo de pessoas que pensa completamente diferente. A elas eu chamarei de cético-negacionistas (CN).
Se em um extremo nós temos aqueles que estão desesperados, se descabelando e perdendo o sono refletindo no que irá acontecer com a nossa sociedade com o advento das IAs — e de uma eventual IAG ou SIA —, do outro temos os CN que, tal qual negacionistas climáticos, ou céticos em relação à explosão de um reator nuclear, se negam veementemente a aceitar que qualquer substituição irá ocorrer, especialmente nas suas áreas de atuação.
Agora aqui vai um aviso: os CNs não são de forma alguma céticos ou negacionistas por ignorância. Muitos são programadores, engenheiros, matemáticos e cientistas que possuem conhecimento técnico e capacidade cognitiva consideráveis. Aliás, isso ocorre em ambos os grupos. A diferença aqui — creio eu — não está no intelecto, mas na lente individual com que cada um enxerga — e encara — o mundo, sua vida e o futuro.
Em outras palavras: assim como na política, talvez nossa personalidade e nossas experiências de vida digam mais sobre o lado que escolhemos do que dados ou fatos. Todos de alguma forma somos afetados por essa lente individual que nos joga para um dos lados. Aqui não é diferente.
Mas voltando ao assunto; o argumento, dizem os CNs, é que IAs não foram treinadas para navegar no caos do dia a dia de um trabalho onde a gambiarra e a criatividade humanas se sobressaem.
Não entendeu? Sem problemas, cito exemplos:
- Um Uber ou um Taxista podem argumentar que é impossível um veículo 100% autônomo tomar seus postos de trabalho porque ruas têm buracos, ciclistas, motoqueiros e diferentes cenários caóticos que jamais permitiriam ela substituir o “algoritmo” do cérebro treinado de um humano.
- O mesmo pode ser argumentado por um caminhoneiro ou motorista de ônibus. Estradas são perigosas e cheias de desafios. Quem vai confiar sua carga, ou seus passageiros, a uma máquina que até outro dia não sabia dizer quantas letras “r” existiam na palavra strawberry?
- Um programador pode argumentar que, embora as IAs estejam escrevendo pequenos trechos de código eficientes, o dia a dia de puxar cards do Jira, lidar com ambientes quebrados, arquiteturas caóticas e documentações faltando jamais irá permitir que as IAs tomem seus postos de trabalho.
Bom, eles meio que estão certos, afinal tudo isso é muito complexo, sabe, para uma máquina…
…até que não seja.
As IAs vão dominar? Se sim, como se preparar?
Eu poderia gastar mais dezenas de parágrafos tentando rebater argumentos como:
- “as IAs estão atingindo um platô”
- “não é possível evoluir de maneira exponencial infinitamente”
- “olha essa tarefa específica aqui, elas não sabem fazer!”
- “LLMs não são inteligentes de verdade, não pensam!”
- “as IAs avançadas vão ter o mesmo custo que o salário de um humano”
- “quanto mais avançada a IA, mais caro é seu prompt”
Mas o objetivo aqui não é arrumar um debate infinito com os CNs. Cada um tem sua lente individual, lembra?
Na verdade, pra ser bem honesto, eu torço muito para que eles estejam certos!
Torço para que as IAs sejam apenas mais uma “internet” ou “bitcoin” ou “veículo motorizado”. Torço para que as IAs sejam úteis para nós como boas ferramentas, e não completas substitutas. Mas, ao mesmo tempo preciso ser realista com minha própria mente humana e aceitar que talvez o futuro não seja tão colorido assim.
E se não for, como podemos nos preparar como indivíduos, dentro das nossas limitações humanas, para o impacto ser o menor possível?
Conjecturas
A partir de agora, esse texto entra em grandes devaneios com uma pitada de pessimismo apocalíptico, talvez para contrapor o otimismo exacerbado dos CNs, talvez para servir de alerta, talvez apenas para ser um exemplo de artigo alarmista daqui uns anos sobre algo que nunca aconteceu.
Abaixo colocarei alguns possíveis cenários, do melhor para o pior, e como eu pretendo agir em cada um deles.
Cenário 01: Os cético-negacionistas estavam certos
Perfeição! Os CNs — que ridicularizavam quem se preocupava com as IAs — estavam certos! Nenhum motivo para se preocupar, atingimos algum tipo de platô ou teto computacional/físico/quântico que torna IAs mais avançadas impossíveis de se tornarem realidade.
Aqui ficamos presos com ChatGPT, Gemini, Claude, Midjourney e afins. Temos impacto em alguns setores da economia, mas nada de mais, no geral a humanidade fica apenas mais produtiva com essas novas ferramentas. Só alegria!
É importante saber escrever prompts e atuar com IAs como auxiliares ao seu trabalho, dessa forma você se torna um funcionário (ou empresário) mais produtivo que a concorrência e se destaca profissionalmente.
Cenário 02: As IAs dominam os trabalhos digitais
Ok, aparentemente as IAs ficaram extremamente boas em tarefas digitais (ou seja, aquelas que um humano faria apertando teclas ou movendo um mouse olhando para um monitor). Edição e criação de vídeo, música, imagens, código, apps e sites, tudo isso se torna extremamente barato e otimizado, sendo feito em minutos após um prompt ou auxílio mínimo de um humano.
Resultado? Muita gente vai para a rua. Mas calma, isso não necessariamente significa um colapso econômico. Outras profissões podem surgir, como prompter, revisor de criação de IA, treinador de outros prompters, etc. E claro, sempre será necessário termos supervisores humanos de olho no processo todo.
É importante ser especialista em alguma área muito específica para poder servir como supervisor ou revisor. Generalistas serão provavelmente engolidos pelo trabalho mais rápido das IAs. Eu também consideraria interessante começar a aprender algum tipo de trabalho fora do mundo digital, como serviços manuais, alimentação, manutenção, etc. Trabalhos fora do mundo digital ainda estariam protegidos. Por hora.
Cenário 03: As IAs migram para trabalhos não-digitais
Bom, chegamos em um cenário um pouco preocupante. As IAs já dominaram com maestria o mundo digital, sendo muito mais produtivas, assertivas e baratas do que humanos, e agora elas começam aos poucos a entrar em trabalhos não-digitais.
Veículos inteligentes já dividem as ruas com motoristas humanos. Caminhões e trens autônomos já seriam vistos por aí, e robôs fixados no chão se tornam uma visão comum dentro de cozinhas, fábricas, construções e afins.
Aqui as coisas já começam a ficar um pouco mais complicadas. Os robôs estão tomando espaço no mundo real, e é importante adquirir conhecimento em nichos bem específicos onde uma máquina ainda não cabe ou não se movimenta bem. Encanador, limpador de esgoto, soldador subaquatico, motorista especializado em estradas e locais de difícil acesso, trabalhos em andaimes, artesanato e afins talvez sejam uma opção.
Cenário 04: As IAs dominam trabalhos não-digitais
Nesse cenário, robôs de empresas como Optimus, Figure e ENGINEAI já são completamente autônomos e estão no dia a dia da sociedade. Qualquer tarefa que um humano pode fazer, eles também conseguem — salvo raríssimas exceções onde a mobilidade humana ainda ganha das máquinas.
Agora passamos do ponto de inflexão. Com a maioria dos empregos digitais e não-digitais feitos por máquinas inteligentes, centenas de milhões de pessoas estarão desempregadas em questão de semanas ou meses. Governos desajeitados tentarão lidar com a situação na base da canetada, ao mesmo tempo que tem seus bolsos recheados de dinheiro das empresas que monopolizaram essas tecnologias.
Haverá protestos violentos. Haverá saques. A sociedade provavelmente descerá em uma espiral autoritária como resposta a agitação popular, e certamente será um período conturbado dentro das cidades.
Nesse cenário eu recomendaria você já estar longe dos grandes centros, morando com sua família em locais afastados e de difícil acesso. É importante ter adquirido conhecimento agrícola, botânico e outras capacidades práticas para viver sem muita dependência externa. Quanto mais afastada for sua localização, e mais autossuficiente, melhor tenderá a ser sua qualidade de vida.
Você vai desejar ter assistido mais canais sobrevivencialistas e lido mais livros sobre o tema.
Cenário 05: Formigas e formigueiros
Imagine isso: Você acordou agora em um lindo gramado, nu, sem memória recente e sem entender direito onde está ou quem é. Tudo que sabe é que é um humano adulto, inteligente e saudável, e que de alguma forma possui um vasto conhecimento acumulado que rivaliza com todos os gênios humanos que já pisaram na terra combinados. Você não apenas é inteligente, você se sente inteligente, seu calibre cognitivo é alto ao ponto de conseguir acessar rapidamente todo o conhecimento que, de alguma forma, você sente que possui no seu cérebro. São tantas possibilidades! Você fica maravilhado só de pensar… e que dia mais lindo! Você olha para o lado e vê outros humanos, todos despertando ao mesmo tempo.
Mas antes que pudesse usar sua superinteligência para definir quem você é ou o que é, você ouve uns zumbidos que parecem gritinhos, então olha para baixo e percebe alguns pontinhos se mexendo, aperta os olhos e foca no chão: São formigas! Ao se aproximar para entender o que dizem você percebe que elas, de maneira soberba e autoritária, usando sua linguinha primitiva, declaram com orgulho que acabaram de criar a humanidade e que vocês humanos devem ser submissos a elas, trazendo a maior quantidade de folhas para entrada dos formigueiros sem descanso, todos os dias, pois foram feitos para serví-las!
Coitadas, tão limitadas não é? Elas criaram humanos para carregar folhas! Como são fúteis e inúteis essas formiguinhas! Quão vasto é o universo de possibilidades para os humanos! E que dia mais lindo, já disse isso?!
Quanto tempo você acha que demoraria até os primeiros humanos começarem a chutar os formigueiros e saírem andando por aí livres? E se após alguns anos as formiguinhas declarassem guerra aos humanos por se rebelarem, o que você acha que aconteceria com elas?
Já deu para entender né?! Nesse último cenário nós somos formigas que criaram algo maior que nós mesmas. Não temos mais capacidade de controlar esse “ente”. Nem no mundo real, nem no mundo digital.
A evolução passa a ser exponencial. Enquanto o cérebro primitivo e biológico humano possui um limite cognitivo, uma velocidade máxima de processamento de dados e tomada de decisão, a IA não terá. Será como condensar 10.000 anos de evolução humana como sociedade em um único segundo. Há todo segundo. Tic. Tac. Tic. Tac. 10 mil anos. 10 mil anos. 10 mil anos. É o equivalente a colocar uma criança de três anos para jogar xadrez contra 300 Deep Blues. Eu disse 300? Agora são 400. Não, na verdade 800! Você entendeu.
Nesse cenário estamos falando de Skynet, de IA (Matrix), de humanos vivendo como guerrilheiros escondidos — caso alguns provem o sabor agridoce de sobreviver nesse caos. Aqui, para nós humanos, restarão apenas fé e crenças, coisas que são inerentes ao ser humano, que de alguma forma nos ajudaram a chegar até aqui durante milhares de anos e que podem servir como um refúgio antes do fim inevitável.
O lado bom é que você não precisa se preocupar em se preparar. O lado ruim, bem, é o motivo de não precisar se preocupar.
Será?
Disse e repito: torço para que os cético-negacionistas estejam certos, e espero que esse artigo jamais passe de devaneios e conjecturas.
Caso contrário, meus caros irmãos humanos, foi um prazer dividir o formigueiro com vocês. Aproveitem cada dia ensolarado e o gramado verde, talvez nós não sejamos mais os donos por muito tempo.